sexta-feira, 23 de outubro de 2009

MOACYR SCLIAR

ESPÍRITO NATALINO

Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal, resmungou. O seu mau humor era tão óbvio, que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia perguntou.

Um desastre foi a azeda resposta. - Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.

- Isto é o cansaço - disse ela.

- Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?

- De que jeito? tenho trabalho.

- Amanhã? No dia de natal?

- O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel. Tenho de aproveitar.

Suspirou:

- Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro obrigação. Depois a celebração.

Ela ficou pensando um instante. - Neste caso, disse - Vamos antecipar a nossa festinha de Natal, vou lhe dar o seu presente.

Abriu o armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:

- Um colete a prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?

- Ora - disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.

Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.

- O que é isto? perguntou intrigado.

Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:

- Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.

Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.


Texto de Scliar extraído do Jornal "Folha de São Paulo", São Paulo, edição de 24/12/2001.

Neste caso Moacyr escreveu um texto de ficção baseado em uma notícia que foi publicada no jornal: "Homem disfarçado de Papai Noel tenta matar publicitária em São Paulo".

E assim, com seu estilo levemente irônico, Scliar, um dos mais conhecidos escritores brasileiros, já publicou mais de 70 livros, entre crônicas, contos, ensaios, romances e literatura infanto-juvenil. Sua maneira de escrever lhe garantiu uma quantidade grande de leitores e também proporcionou vários prêmios literários como o Jabuti, Associação Paulista de Críticos de Arte e o Casa de Las Américas.

A paixão pela literatura surgiu muito cedo. Seus pais, imigrantes judeus-russos, eram grandes contadores de história; a mãe, professora, foi quem o alfabetizou e não demorou muito para que ele começasse a escrever e que suas obras começassem a circular pelo bairro onde morava no Rio Grande do Sul.

Frequentemente aborda temas como a imigração judaica no Brasil e também tópicos como o socialismo, medicina (área de sua formação), a vida da classe média e vários outros assuntos. O autor já teve obras traduzidas para mais de 12 idiomas.

Sua primeira obra de importância foi escrita em 1968; O Carnaval dos Animais, um livro de contos que alcançou grande repercussão crítica.

Entre suas obras mais importantes estão: "A História de um médico em formação" (1962); "A Guerra do Bom Fim" (1972); "O Exército de um Homem Só" (1973); "Mês de Cães Danados"(1977); "O Centauro no Jardim" (1980); "A Orelha de Van Gogh"( 1988 - Livro que lhe rendeu o prêmio da Casa de Las Américas); "Olho Enigmático" (1988) e A mulher que Escreveu a Bíblia"(1999).

Várias pessoas tentam traduzir Scliar, termino então com a frase de Wilson Martins do Estado de São Paulo:

" Moacyr Scliar é um realista mágico, um criador de atmosferas e um domador do fantástico".


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